Há dias, apareceu-me à frente um artigo de jornal sobre o lugar da vírgula. Li com atenção, uma vez que artigos sobre vírgulas e outros aspectos pertinentes da pontuação são sempre do meu interesse e agrado. E foi também com agrado que percebi que há toda uma doutrina em redor da vírgula, havendo até locais onde as vírgulas não podem, de todo, aparecer. Talvez este tema tenha sido abordado durante os primórdios do meu percurso académico, mas... é daquelas coisas... a malta só se interessa pela escola quando ela deixa de ser obrigatória. Ou melhor, quando começamos a trabalhar e deixamos de andar na escola. Antes disso, o tempo de aulas era preenchido com actividades lúdicas, como jogos do galo ou curtes atrás do ginásio, ou tarefas extra-curriculares, como organizar jantares ou arranjar alcunhas para os colegas. Esta última tarefa, de extrema importância na organização da hierarquia e sub-grupos dentro da turma, emergia de forma exponencial quando existiam duas pessoas com o mesmo nome. E eu gostava do desafio de ter essa tarefa a meu cargo. Lembro-me das Tânias. Eram duas na minha turma, o que fazia com que, a menos que morressem ou mudassem de escola, tivéssemos um problema para resolver logo no início do ano lectivo. Ficou então estipulado oficialmente que, enquanto pertencessem as duas à mesma turma, sempre que alguém se referisse a uma das Tânias, dissesse o nome próprio da mesma seguido imediatamente do cognome 'Gorda' ou 'Muda'. Uma delas tinha problemas de peso e a outra problemas de audição, como já devem ter percebido. É certo que a obesidade é uma doença e a surdez uma limitação importante, porém distingui-las com cognomes 'loira' e 'morena' só porque tinham cores de cabelo diferentes, era sintomático de uma fraca dedicação e empenho da minha parte nesta nobre tarefa. Sei que a Tânia Gorda casou e que está ainda mais gorda e que a Tânia Muda casou com outro surdo e que tiveram um filho que ouve. Bonito, não é? A par das Tânias, e no mesmo ano lectivo, tive a tarefa dos Edsons. Já não bastava alguém chamar-se Edson, ainda por cima tinham de ser dois. Um deles chama-se Edson Horácio. Tive de dar a mão à palmatória: nunca na vida eu conseguiria arranjar uma alcunha melhor que o nome de baptismo deste jovem. Reconhecer as nossas limitações também é uma virtude, e Edson Horácio assim ficou. Estive muitos anos sem o ver, mas, curiosamente, soube há pouco tempo que se casou com uma modelo polaca e que emigrou. O outro Edson ficou o 'Edson da Vírgula'. Se era bom em Português, não faço ideia. Nem faço ideia o que será daquele rapaz hoje. Aliás, nem nunca soube nada acerca dele. Nem me lembro de alguma vez termos tido algum tipo de conversa. Ele não gostava de mim. Só me lembro que ele tinha uma cárie do tamanho de um grão de milho num canino, cárie essa, que lhe moldava o dente em forma de vírgula. E Edson da Vírgula ficou. E agora pensam vocês: olha que giro, por causa de um artigos sobre onde devem estar as vírgulas, ela lembrou-se de um rapaz a quem deu a alcunha de Edson da Vírgula e que, curiosamente, é o único a quem perdeu o paradeiro ao fim destes anos. E agora penso eu: isto de me lembrar de pessoas que nunca gostaram de mim e de escrever mais de 10 linhas em sua homenagem só pode ser falta de sexo.